domingo, 1 de abril de 2012

Ana Torrie | A Exemplar Educação de Edgar V


Inaugura a 31 de Março às 18h
até 3 de Maio
ESPAÇO GESTO - Rua José Falcão, 107


A Exemplar Educação de Edgar V


Era a alcova para onde recolhíamos o lastro dos corpos

Eram os lençóis onde garimpávamos o mineral dos sonhos

Era o marulhar dos bichos a embaterem na persiana da noite

O mundo existia como existem os palcos

Promontório onde exibir a nudez do ego

Habitáculo exíguo e bolorento locado sob consignação pelos espectros imperiais do passado



Era a fruta fresca pela manhã o pão ázimo

O frenesim estúpido das coisas a retomarem os lugares no palco

Era o gato ele também sisudo de orelha a orelha

A cirandar pelo quarto num vagar de múmia

Era o crepitar da manhã o tum-tum dos pés a calcarem os passos de ontem e de outrora

Ao longe ouvia-se o desembarcar dos piratas que habitavam furiosamente os nossos sonhos

Que roubavam a comida que queimavam o algodão



Eram as mesas longuíssimas e as toalhas de renda a ondular bolinas

Eram as pernas das mulheres os rizomas das varizes um silêncio onde conjurar a solidão

O gato a gravitar pelo eixo incerto dos grossos tocos cobertos de pêlo

De vez em quando mimado pelo desabar glorioso de uma tira de bacon

Era olhar para as mãos e perceber que todos os dias cresciam

Como se quisessem afastar-se do corpo para sozinhas no escuro se enamorarem das coisas



Eram os dias a cabriolarem leves num calendário desatendido

O chão a ficar progressivamente mais longe o céu mais perto

As mulheres dobradas como flores a morrerem em jarros

Besuntadas de misteriosos unguentos numa taxidermia precoce

Caixas de ressonância ocupadas todas pela mesma voz

Velavam-se umas às outras no silêncio e no escárnio

Nada era permanente senão a ruína o gato a biblioteca entregue às aranhas


Ana Torrie

Nasceu em 1982, no seio de uma família falida de descendência aristocrática escocesa. Foi educada em regime privado pelo avô materno (homem de inúmeros ofícios, que ganhou a vida como sapateiro, técnico farmacêutico e ilustrador de postais de boas festas). Descobre muito cedo a sua paixão pela literatura macabra, tendo escrito e desenhado, ainda com 11 anos de idade, o seu primeiro conto ilustrado: “As Lágrimas Verdadeiras de um Crocodilo Destroçado”.
No dia 5 de Dezembro de 1999, pelas 7 da manhã, assiste ao nascimento de uma ninhada de gatos e emociona-se. Apaixonada pela obra de Piranesi, dedica dois anos da sua vida ao estudo da representação do céu na gravura europeia dos sécs. XVIII e XIX.
Nos dias de hoje, constrangida por grandes dificuldades financeiras, divide-se por trabalhos da mais variada espécie: retocadora de fotografias antigas de famílias aristocratas do Porto; tratadora de cavalos e vigilante de florestas.

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